domingo, 30 de outubro de 2011

Aura e Perda da Aura na Obra de Arte (um ensaio sobre a fotografia)

(por Eduardo Souza)

Até o surgimento da fotografia, por volta de 1835, a obra de arte era marcada por uma aura conceitual de estética quase intransponível, onde a imitação da realidade era considerada uma prática para poucos, os artistas, que quanto mais tentavam aproximar-se da realidade através de seus quadros, mais eram considerados gênios cheios de glória. A inspiração era como uma bênção divina que subitamente fazia surgir as imagens na tela do pintor, e assim eram-lhe atribuídos as qualidades de talentoso ao concebimento de sua “bela arte”. Durante o século XIX, o que vigorava ainda era a “estética do belo”, mas a indagação de quais seriam os verdadeiros objetos da estética e quais modificações a fotografia e o cinema introduziram na arte, modificariam definitivamente o rechaço a que a fotografia foi exposta em seus primórdios.

O “advento provocativo” da fotografia, e considerada por seus opositores sua maior pretensão, é o de fixar imagens, pois se o homem foi feito à semelhança de Deus, e a imagem de Deus não pode ser fixada por nenhum mecanismo humano, como disse o jornal Leipziger Anzeiger, então só o “artista divino”, através de uma “inspiração celeste”, teria o poder de conceber uma obra de arte “pura” e “bela”. Dentro deste conceito estético aurático e separatista, a fotografia representará a principal responsável pela perda da aura da obra de arte e seu rompimento com as concepções estéticas tradicionais, mudando para sempre o próprio conceito de estética. Também não seria levado em consideração por esses críticos o fato de que o concebimento da obra de arte na fotografia é a sua “revelação”, que assim como já diz o nome, revela; duplica o obscuro, salta aos olhos; faz-se perceber e retira o véu da realidade. É como diria Walter Benjamin: “a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar”. Ao mesmo tempo deixa de servir à nostalgia e à ostentação prolífica da aristocracia para registrar anônimos e ruas cheios de mistérios a serem descobertos, ou melhor, “revelados”. Neste sentido, apesar do negativo ser essencialmente reprodutível, a fotografia não é uma simples reprodução mecânica do real, nem uma “mímese genial” retratada na tela do pintor, mas uma forma de interferência e (des)construção da realidade por parte do sujeito, onde “os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós”.

Contestável e revolucionária, esta nova técnica surgiu para mudar o conceito de estética tradicional, a “estética do belo”, para a “estética da percepção”, retomando o conceito grego de aisthesis ligado às “percepções”, onde ao invés de nos devolver o real, a fotografia nos devolve uma “expressão” que não é real, há de ser “percebida”: é a transformação da realidade numa incógnita e seus símbolos. Ela abarca coisas, situações, cores, sentimentos e deformações que não foram percebidas, e nem poderiam ser, até mesmo pelo próprio fotógrafo. E mais, quanto maior a técnica, mais imprevisível se torna os elementos. Em vez da mímese, a técnica transfigura cada vez mais o real e expõem as deformações e estereotipias como nos sonhos, alucinações ou surtos psicóticos. “Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional” (Walter Benjamin). Ela nos preenche os sentidos com mundos desconhecidos e imperceptíveis. Assim, a fotografia pode ser considerada uma mímese com expressão, e não uma imitação pura e simples.

Esta ideia de “revelação” irá coincidir com o conceito de “montagem” no cinema, onde toda e qualquer situação, personagem ou lugar será “construído” à vontade de seu criador, onde todo cotidiano ordinário pode tornar-se extraordinário. O artista deixa de ser o gênio inspirado, o talentoso inato, o receptor de imagens divinas, pois a fotografia e o cinema introduzem a construção na percepção. Eles trilham o rumo e o significado do olhar através de um árduo trabalho que envolve inúmeras técnicas, e assim a obra de arte perde definitivamente sua “aura”, sua compreensão mística, mítica e religiosa da criação e da originalidade, dando lugar à ideia de uma construção racional e técnica, ainda que ilusória, do processo criativo, e este será o princípio de todas as artes modernas. Além disso, a obra de arte aurática é única, autêntica e comprovadamente um original, assim sendo, a reprodução em série da fotografia destrói automaticamente a antiga aura porque aproxima o objeto do sujeito, transformando as criações individuais em coletivas. Apesar de não ser o original, todos podem adquirir um Van Gogh através de suas inúmeras “cópias”.

Mesmo com todo aprimoramento técnico da fotografia, desde os novos recursos das câmaras e as paisagens artificiais de estúdio, até novos tipos de impressão e retoques na revelação, ainda assim, como observou Orlik, “a condução luminosa sintética” obtida pelo longo tempo de exposição, que “dá a esses primeiros clichês toda sua grandeza”, cumpriria o mesmo efeito ilusório do condicionamento técnico do fenômeno aurático perpetuado em imagens de grupo onde os personagens retratados simbolizavam a eternidade e a confirmação de “estarem juntos” , e também “dotados de uma aura que se refugiava até nas dobras da sobrecasaca ou da gravata lavallière [...] Nos primeiros tempos da fotografia, a convergência entre o objeto e a técnica era tão completa quanto foi sua dissociação no período de declínio”, onde surgiram fotógrafos como Eugène Atget, e tanto a aura da técnica usada pelo fotógrafo como o olhar suntuoso e pleno do aristocrata fotografado se esvaíram definitivamente, da imagem e da realidade. Desta forma, os motivos das fotografias deixam de ser apenas os retratos e começa-se a abrir espaço para todo tipo de interferência por parte do artista em sua obra. E mais, com a captação das mais diversas fisionomias, arquiteturas, cidades, culturas distantes, acentua-se o caráter científico da fotografia, destacando sua importância histórica e social. Logo, a discussão acerca do exercício fotográfico não será mais em torno do conceito da “fotografia como arte” ou não, mas sim da “arte como fotografia”, e este é um dos pontos mais importantes deste debate, pois a “arte” irá descer de seu pedestal aurático para ir de encontro e abarcar as novas técnicas, sejam elas quais forem.